terça-feira, 11 de janeiro de 2011

Lá vem história outra vez...

Hoje é terça-feira, dia 11 de janeiro e, portanto, dia de história outra vez! Aí vai. Aproveite e comente ao final da leitura, ok? Nesta história há várias palavras que você, provavelmente, não conhece, então, ao final, nós colocamos o significado delas. Boa leitura!!!
Aguarde a próxima história na 3a. feira que vem!!!

O cameleiro espertinho

Quando Samussa, o cameleiro, sentiu chegar a morte, chamou à cabeceira o filho Kitir.

Você está sozinho no mundo e sem um tostão, meu pobre filho. Minha casa está caindo em ruínas, você sabe, e tive de vender meu rebanho para sobreviver. Só lhe deixo como herança um velho camelo, que só serve mesmo para melhorar a chorba1 do dia a dia. Portanto, siga o meu conselho: não fique aqui onde a miséria é muito grande. Vá procurar fortuna nas terras distantes, onde a vida é menos dura e o céu mais clemente.”

Como filho respeitoso, Kitir, que tinha catorze anos e era tão baixinho que não passava o tamanho de um narguilé2, fez o que o pai disse. Depois do enterro, montou no velho camelo e se juntou a uma caravana que atravessava o deserto em direção ao norte.

Após vários dias de marcha exaustiva sob um sol escaldante, os viajantes chegaram a um oásis onde montaram o acampamento. Enquanto todos se acotovelavam em torno do poço para beber água, Kitir viu um homem de barba branca sentado debaixo de uma palmeira, que olhava invejoso para eles.

Está com sede, vovô?”, ele lhe perguntou.

Minha boca está tão seca quanto a areia das colinas”, respondeu o velhinho.

Então me dê sua bilha3 para que eu vá enchê-la”.

O velho balançou tristemente a cabeça.

Ai de mim, ela está furada e não tenho outra.”

Diante de tanta miséria, o coração de Kitir encheu-se de pena.

Quer dividir a minha?, propôs.

E, sem esperar aquiescência4 aproximou sua bilha dos lábios do pobre homem e o fez beber.

Ora, o homem era um mágico que se apresentava sob essa aparência para testá-lo.

Sua generosidade acaba de salvá-lo, assim como aos seus companheiros de viagem”, ele disse ao rapaz. “Escute bem o que lhe digo: amanhã a caravana chegará a uma cidade chamada Kolkara, palavra que na língua berbere5, significa ”cidade do medo”. Vocês terão de atravessá-la para continuar o caminho. Ora, ela é guardada por um gigante de duas cabeças, sendo que uma olha para a esquerda e a outra para a direita a fim de que nada escape à sua vigilância. Esse gigante devora todos os que passam ao seu alcance, como demonstram os milhares de esqueletos que cobrem o chão em torno dele.”

Ao ouvir essas palavras, Kitir começou a tremer.

Não há nenhuma maneira de desviar a atenção dele?”, perguntou.

Só uma: apresentar-lhe uma adivinhação a qual ele não consiga responder.”

Infelizmente, não conheço nenhuma”, suspirou o rapaz.

O velho remexeu seus farrapos e deles tirou uma amêndoa seca.

O que há dentro dessa casca?, perguntou.

Uma fruta”, respondeu Kitir.

Não”, disse o velhinho, “pois há muito tempo os vermes a comeram.”

Então, vermes?”

Não, pois por falta de comida eles morreram e estão reduzidos a pó.”

Então, pó?”

Não, pois o tempo fez desaparecer.”

Kitir coçou a testa, perplexo.

Nesse caso, não há nada.”

Você se engana, 'nada' não existe.”

O rapaz, que não tinha outra ideia deu-se por vencido.

A resposta é: o escuro”, disse o velho.

E entregando-lhe a amêndoa, desapareceu.

No dia seguinte, a caravana chegou às portas de Kolkara e foi parada pelo gigante de duas cabeças. Dá para imaginar o terror de todos quando viram o monstro e os milhares de esqueletos que cobriam o chão em torno dele! Acreditando que a derradeira6 hora chegara, rezaram para Alá e pediram que os acolhesse em seu paraíso; foi quando Kitir se adiantou, brandindo7 a amêndoa.

O que há dentro desta casca?”, perguntou ao gigante.

Ele, que se preparava para devorar suas primeiras vítimas, logo as soltou.

Uma fruta”, respondeu.

Não”, disse Kitir “pois há muito tempo os vermes a comeram.”

Então, vermes?”

Kitir balançou a cabeça.

Não, pois por falta de comida eles morreram e foram reduzidos a pó”.

Então, pó?”

Não, pois o tempo o fez desaparecer.”

O gigante coçou as duas cabeças. Perplexo.

Nesse caso, não há nada.”

Você se engana: 'nada' não existe.”

O gigante refletiu e, em seguida, um largo sorriso iluminou seus dois rostos, mostrando dentes pontudos maiores que o dedo e todos vermelhos de sangue.

Já sei!”, gritou. “É o escuro!”

Esse monstro é mais esperto do que eu imaginava pensou com seus botões o astucioso8 Kitir. Mas para um esperto, esperto e meio!

Sua resposta está errada”, declarou.

Está certa”, protestou o gigante.

Vamos verificar!”

E quebrou a amêndoa.

Onde está o escuro?, perguntou.

Eu o vi fugir quando a luz entrou dentro da casca”, respondeu o gigante.

Então, encontre-o!”

O gigante começou a correr para um lado e para o outro, à procura do escuro perdido.

Ele se refugiou ali”, garantiu de repente, ao avistar um buraquinho no chão. “Vejo-o daqui, escondido no fundo!”

Se quiser que eu acredite, agarre-o e me mostre!”, disse Kitir.

Logo o gigante começou a encolher, encolher, até ficar do tamanho de um ratinho. Depois,pulou para dentro do buraco, que o rapaz tratou de tampar com uma grande pedra, prendendo-o assim nas entranhas da terra.

Logo em seguida, a Cidade do Medo, libertada de seu opressor, fez uma festa para os caravaneiros. Kitir foi carregado triunfalmente, e o rei dessa cidade, que não tinha filho, o adotou. Alguns anos depois o filho do cameleiro o sucedeu no trono e se revelou um soberano tão sábio que, sob seu reino, Kolkara mudou de nome e se tornou Abukara - o que, na língua berbere, significa “cidade da felicidade”.


(Conto das mil e uma noites, recontado por Gudule. Extraído do livro Contos e lendas das Mil e Uma Noites, da Companhia das Letras.)

1Sopa.

2Espécie de cachimbo.

3Vaso de barro com gargalo curto e estreito

4Concordância.

5Povo nômade da África.

6Última.

7Sacudindo.

8Que tem astúcia, esperteza.


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